terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Antes da Meia-Noite - Depois que se é Feliz

Em um final de aula a pequena Joana pergunta à professora: "Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?"
Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, 1998

Toda vez que eu vejo finais felizes "fáceis" eu me pergunto o que vem depois. E a questão de Joana pode ser considerada um resumo deste filme: o que acontece depois de um final feliz. De certo modo, diversos filmes românticos criam uma mitologia de amor rápido e intenso, capaz de preencher cada espaço e resolver cada diferença, simplificando os verdadeiros grandes desafios que se farão na longa estrada.

Quando o diretor encarou contar o que vem depois em Antes da Meia-Noite, ele decidiu seguir a mesma abordagem bem-sucedida do capítulo anterior: fazer um filme nove anos depois do anterior, tanto no filme quanto no mundo real. Esta técnica permite não apenas ter personagens realmente mais velhos, mas também explorar a sua maturidade, experiência de vida e visão de mundo.

Este filme nos mostra a verdadeira beleza do amor, desafiando a longa estrada da vida; o atrito e desgaste das relações; o balanço entre nossas expectativas e egoísmo versus nossa generosidade e impulso a compartilhar a experiência da vida. Não há resposta final, não há posição absolutamente correta e isto leva à questão da aceitação ou resignação, como foi bem colocado por Tim Lott em seu comentário.

Como o amor luta nas sombras da pobreza humana é a beleza deste filme. Isto é muito maior que rompantes intensos de paixão em momentos de paraíso. Esta percepção me toca profundamente e me faz crer que há algo no amor que transcende a condição humana.

domingo, 30 de novembro de 2014

Boyhood – Uma família em tempo real

Mason no filme Boyhood.
Até agora, todos os filmes que eu tenho visto usam atores diferentes para mostrar pessoas crescendo ao longo de suas vidas. Mas eu reconheço as pessoas pelo seu olhar. Mesmo que você possa encontrar um segundo ator bem parecido com o primeiro, eles nunca terão o mesmo olhar. E este é um filme fabuloso se você considerar somente esta técnica de acompanhar as pessoas “realmente” crescendo. Especialmente o Mason, cujo olhar e inquietude são marcantes, enquanto ele cresce em frente aos nossos olhos de sua infância à juventude.

Mason e o pai no filme Boyhood.
Um filme mostrando a beleza, a luta, as alegrias e o drama de uma família que se recompõe em múltiplas facetas. O diretor investe na sensibilidade da vida corriqueira ao invés dos grandes eventos. Um projeto maravilhoso, que definitivamente vale a pena ver.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Por Detrás de Seus Olhos - A Sangue Frio

HS1of4 300 De repente, "a autora" entra na sala. Ela me convida a ler, é um tipo de sedução, uma batalha, e eu não consigo resistir. Ela me arrasta para uma mente, para os olhos de outra pessoa. Eu posso perceber seus pés e seus sapatos, e olhar seu mundo. Eu tento lutar para me manter! Eu tenho minhas crenças e preconceitos, minha visão arrogante do mundo. Eu penso que estou correto. Mas ela quer ir bem mais longe, e eu não posso resistir. Há a ternura e inocência do começo dele, então o sofrimento, a injustiça. Eu fui capturado na rede. "A autora"  me transformou em seu personagem, tornando-me capaz de olhar o mundo "por detrás de seus olhos". Há este irresistível impulso de ir como ele em direção a estes atos impensáveis. Isto é o que eu estava procurando: a improvável experiência de "o leitor".

A Sangue Frio de Truman Capote não pode ser reduzido a um "livro de assassinato". É um livro sobre a vida, invocada de volta das cinzas por uma descrição magistral da rotina diária de Holcomb. Mas é também uma porta que bate na cara, encerrando a trilha da vida sem aviso prévio. Sussurrando em seu ouvido, a morte não tem planos.

Capote conduz este livro com competência. Ele me pôs por detrás de diversos olhos, começando pelos habitantes da tranquila Holcomb, sua rotina e expectativas, seus sofrimentos e alegrias. O mundo é Holcomb. Eu posso senti-los, eu posso entendê-los e viver suas vidas. Mas há também as vidas de Dick e Perry, os assassinos. Paulatinamente Capote o leva para as suas mentes e visões de mundo, desde o princípio. Ele projetou a estória como um encontro de vidas e a explosão que transborda para todos os lados, a família, os conterrâneos, os forasteiros. Um prisma de centenas de estórias.

O horror do encontro entre mundos e a saga para encontrar uma explicação, uma consolação, um motivo para esquecer, perdoar e retornar à vida.

domingo, 26 de outubro de 2014

Contos de Lugares Distantes

“Quando eu era criança, um grande búfalo do rio vivia no terreno baldio no fim da nossa rua, aquele que ninguém cortava a grama.”

Um livro de estórias improváveis e ilustrações enigmáticas. Em "Contos de Lugares Distantes", Shaun Tan constrói um mundo fantástico sempre provocando a sua imaginação. Ele te convida a compartilhar estórias não triviais, onde você sente a narrativa entrelaçada com as imagens etéreas, uma fusão de experiências!

Trata-se de um livro infantil não usual. A maioria deste tipo de livro subestima a inteligência e gosto das crianças. Não este.

Shaun Tan partiu de uma coleção pessoal de desenhos informais que ele fez no estilo "margem de página". Ele combina várias técnicas artísticas no mesmo livro. Suas estórias abordam assuntos humanos profundos em um estilo fantasia. Lugares fantásticos, passagens inesperadas e criaturas estranhas te esperam neste livro (não somente) infantil.


sábado, 28 de junho de 2014

O Pássaro Madrugador

the early birds por Angelo DeSantis

Diz uma frase popular em inglês: "the early bird gets the worm" (o pássaro madrugador pega a minhoca). Alguns atribuem a Robert A. Heinlein o complemento: "the early worm deserves the bird" (a minhoca madrugadora merece o pássaro).

Minha contribuição para a filosofia: antes de madrugar, é bom que você saiba em que posição da cadeia alimentar você está.

domingo, 1 de junho de 2014

A Chegada

A Chegada por Shaun Tan
Hoje eu descobri Shaun Tan no livro A Chegada. Um artista que é capaz de combinar o fantástico com o corriqueiro em ilustrações inspiradoras e sensíveis. Seu livro me fez lembrar a técnica singular de Moebius. Em um livro feito de imagens sem falas, Shaun Tan lhe faz viver a experiência de um imigrante que se sente perdido. A terra fantástica produz uma percepção sem paralelos de se estar em um mundo estrangeiro, sem referências e mergulhado em uma língua desconhecida.
Voyage D’Hermes por Moebius

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Qualquer Aparência

Não seria a ficção uma excelente ferramenta para experimentarmos aquilo que não se pode testar em um laboratório no mundo real? Esta foi a pergunta que me fiz, quando recentemente reli Metamorfose. Não é só o estilo marcante de Kafka trafegando entre o real e o absurdo (ainda que só por isso valha a pena), mas pela sua capacidade de usar o imaginário como instrumento para nos fazer pensar no real; no mais concreto real.

Gregor Samsa acorda uma manhã como um monstruoso inseto. Mas se você não estiver preparado, isto envolve muito mais sobre o real do que a maioria dos documentários que eu já assisti falando sobre pessoas.

Na Ciência, é comum que se tente isolar uma variável para testes. Por exemplo, se você quer saber se casca de ovo ajuda o crescimento das samambaias, poderá plantar muitas samambaias em condições iguais (ou pelo menos muito próximas) e escolher um grupo para usar casca de ovo e outro não. Neste caso, você estará “isolando” a variável casca de ovo e poderá acompanhar como se comportam os dois grupos.

Mas como faríamos se a pergunta fosse: quanto vale a essência de uma pessoa? Dá para isolar esta variável? Vale transformar Samsa em um repugnante inseto em um estalo de dedo? Sua essência continua a mesma; ele segue pensando e tentando agir como antes. Sua família sabe que aquele é Gregor Samsa.

Reli o livro. Queria reencontrar a pergunta que me fiz a primeira vez: será que nos comportaríamos assim? Confesso, há tempos em que temo que sim. Mas talvez seja possível transcender o esperado. Com algo intangível, talvez inventado, chamado amor. Invenção estranha.

Se decidir ler ou reler a "pequena estória" de Kafka, pense que ele continua o mesmo, Gregor, e todos sabem disso. Mas talvez Kafka nos ponha diante da maior pergunta que não queremos responder: é verdade que amamos a essência além de qualquer aparência?

segunda-feira, 3 de março de 2014

Fugitive beauté

À une passante em francês/português e referências da imagem
“Un éclair… puis la nuit ! — Fugitive beauté”

A primeira vez que ouvi À une passante sendo narrado eu mal começava a tentar aprender francês. Não era capaz de entender as palavras, mas havia alguma coisa na melodia das palavras que me capturou.

Tentei apelar para traduções, mas foi inútil. Elas capturavam parte do sentido, mas não a cadência e a melodia. A poesia não acontecia em língua estrangeira. Decidi escutar a narração dezenas de vezes, até que meus ouvidos fossem capazes de entrar na angústia e contemplação de Baudelaire, ao dizer Fugitive beauté.

Em italiano se diz “traduttore, traditore” (tradutor, traidor), para expressar a impossibilidade de se traduzir. Sinto muito, mas se você quiser acompanhar Baudelaire no paraíso inalcançável que repentinamente cruza a sua rua, terá que fazê-lo em francês.

Dou minha contribuição colocando o poema À une passante (A uma passante) na minha página e esta referência para uma excelente narração em francês feita por Camille Chevalier-Karfis.

Ok, ok, eu sou um traidor! Eu fiz uma tradução do poema para o português com minha mãe (a maior parte ela). Queria atrair possíveis leitores e não gostei das traduções que encontrei. De qualquer modo, a tradução tenta se aproximar do sentido, sacrificando a cadência e melodia do francês. A tradução, portanto, não tem a intenção de substituir a leitura da versão em francês, mas só dar um gostinho inicial (pensou que escaparia fácil!).