domingo, 23 de outubro de 2011

A voz de Sargento Getúlio

Casa do sertão
Se tornar brasileiro é reconhecer uma voz e se encantar por ela. É decidir que não se quer contar a estória da vida de outro modo, a não ser com aquelas palavras próprias que não serão pronunciadas em outro lugar do mundo.


Esta foi a minha sensação quando retornei para o Brasil depois de passar três meses nos Estados Unidos. Encontrei os primeiros brasileiros perdidos no aeroporto, ainda nos Estados Unidos, em uma conexão. Contando agora parece exagero, mas ouvir aquela fala, não apenas brasileira mas nordestina, me deixou emocionado. Relembrei isso, porque esta sentimento com a língua é a característica marcante do livro Sargento Getúlio de João Ubaldo Ribeiro. A voz de Getúlio, sargento do sertão, é o que dá o tom do livro. Uma voz marcante de um sertanejo nordestino que narra.

Vou ser franco, esbarrei neste livro por acaso em uma livraria e estava barato. Às vezes eu tenho a impressão de que muitos entre os melhores livros que li foram acidentais como este.

Uma vez um amigo me perguntou como eu reconheço um bom livro. Não gosto de regras gerais, pois acho que trata-se de um parâmetro pessoal. Há certos autores que gostam de explorar como matéria-prima o “e se?”: E se eu fosse assassino? E se eu fosse uma prostituta? E se eu fosse vítima da opressão de um ditador?

Esta é, sem dúvida, a matéria de excelentes romances, tal como Sargento Getúlio. Longe de ser uma tarefa simples, tratar do “e se?” exige um mergulho em uma mente alheia. Ser capaz de trazer o olhar do outro livrando-se dos preconceitos e quando falo de preconceitos pode ser muito mais do que você imagina. Ao mergulhar no romance, João Ubaldo me transformou em Getúlio, admirador de Lampião e inimigo voraz dos udenistas; o bem e o mal se deslocam sob o olhar de Getúlio; a brutalidade, a valentia, a fidelidade incondicional ao Chefe, o respeito ao padre, o xodó com Luzinete, mais de vinte mortes nas costas, o sonho de se aposentar e ter uma casa em Japaratuba.

O romance é bem humorado e a linguagem impecável: “O Chefe disse: me traga esse homem vivo, seu Getúlio. Quero o bicho vivão aqui, pulando. O homem era valente, quis combate, mas a subaqueira dele anganchou a arma, de sorte que foi o fim dele. Uma parabelada no focinho, passarinhou aqui e ali e parou.” (pg 21 da 5a edição, Objetiva)

Qual a moral da estória? já me perguntaram. E esta pergunta me parece como aquela que me fazem eventualmente: Por que você toma chá? É pelo efeito medicinal? É para emagrecer? Eu respondo: é pura e simplesmente porque eu gosto de chá, não há outra razão especial. Isto, ao meu ver, é um diferencial de romances “e se?”. Não é intenção do autor lhe ensinar uma lição, como alguns romances que se parecem com auto-ajuda. Ao contrário, qualquer interferência do autor neste sentido soaria artificial. O interessante em um romance como Sargento Getúlio é a oportunidade de viver uma outra vida. Como disse Eco:
“É através da memória vegetal do livro que podemos recordar, junto com nossas brincadeiras da infância, também as de Proust, e entre nossos sonhos da adolescência os de Jim em busca da Ilha do Tesouro; extraímos lições não só dos nossos erros, mas também os de Pinóquio, ou dos Aníbal em Cápua; não suspiramos somente pelos nossos amores, mas também pelos da Angélica de Ariosto -- ou, se formos mais modestos, pelos da Angélica dos Golon; assimilamos algo da sabedoria de Sólon, sentimos calafrios por certas noites de vento em Santa Helena, e nos repetimos, junto com a fábula que a vovó nos contou, aquela narrada por Sherazade.” Humberto Eco, A Memória Vegetal.