sábado, 13 de agosto de 2011

As coisas que a gente aprende

France in XXI Century. School
Uma especulação para além da aprendizagem controlada pelo nosso consciente.

Algumas experiências nos últimos anos modificaram radicalmente minha percepção sobre o que eu sou capaz de aprender e como. Não é uma nova teoria educacional ou descoberta revolucionária. É o tipo da coisa que sempre esteve lá, mas eu nunca notei =)

Eu vou contar essa estória de trás pra frente. No ano passado eu estava falando com um colega da França sobre café. Ele contou-me que drasticamente passou a tomar café sem açúcar e, em algumas semanas, começou a gostar. Até então eu só conhecia pessoas que sempre tinham tomado café sem açúcar, ou o oposto. Fiquei curioso e resolvi tentar.

Os primeiros dias foram terríveis. Meu organismo estava tentando entender por que eu estava bebendo aquela coisa horrível. Então uma estranha adaptação começou a entrar em curso. Nosso organismo foi construído para adaptar-se; e adaptar-se frequentemente significa aprender. Em algumas semanas meu paladar para o café mudou. Na ausência do açúcar monofônico, eu refinei meu paladar para o café polifônico.

Para muitas pessoas aprender é sempre uma atividade consciente, em que nós estamos no controle do processo, lendo, memorizando e organizando ideias. E como foi que aprendemos ler, andar e saborear?

Muitas pessoas irão argumentar que paladar não é algo que se aprende. Parece mais com uma daquelas coisas com as quais a gente nasce. Contudo, se pelo menos parte do nosso paladar não é aprendida, como explicar paladares compartilhados por culturas e comunidades?

Nosso cérebro é uma imensa rede maleável, conectada em cada parte do nosso corpo, constantemente se adaptando, constantemente aprendendo. Grande parte deste processo não é dirigido pelo nosso controle consciente. Entretanto, nós podemos canalizar seu fluxo em nosso benefício.

Além do caso do café, outra experiência interessante ocorreu há anos atrás, quando eu comecei a escutar gravações de entrevistas em inglês na tentativa de evoluir a minha capacidade de escuta da língua inglesa. Naquela época, eu tinha uma boa capacidade de leitura em inglês e uma escrita mediana, mas eu não conseguia entender praticamente nada se alguém falasse inglês.

Agora, pense em como você aprendeu a falar. Seu cérebro estava submerso em um oceano de sons, tentando entender o que estava acontecendo. Gradualmente, nossa plástica rede de neurônios começou a reconhecer sons, depois construções mais elaboradas. O processo de aprendizagem inclui experimentação. Por isso, nós começamos a fazer sons, depois ensaiar palavras e assim por diante. Um processo impressionante, sobre o qual têm se debruçado pesquisadores de todo o mundo.

Minha abordagem para aprender a escutar inglês foi inspirada neste processo. Eu comecei a escutar entrevistas em inglês. No começo eu não consegui nem mesmo diferenciar as palavras (você não concorda comigo que esta parece a experiência do café?). Eu escutei novamente as mesmas entrevistas várias vezes e, progressivamente, meu cérebro começou a reconhecer palavras, depois frases e então entrevistas completas. Foi um processo lento. Foram, digamos, seis meses para que eu pudesse entender alguma coisa; um ano e meio ou mais para que eu me sentisse confiante. Mas é um processo de refinamento sem fim. Eu desenvolvi o hábito de continuar escutando praticamente todos os dias, misturando coisas. A Web é cheia de recursos gratuitos: audiobooks, entrevistas, rádios, musica etc. É uma experiência nova e gratificante baixar livros no LibriVox, por exemplo, e escutar completamente por áudio O Retrato de Dorian Gray ou A Origem das Espécies. Você passa a considerar novos valores, como a habilidade do leitor de audiobook -- por falar nisso, recomendo Dorian Gray lido por John Gonzalez.

Estas experiências irão variar de acordo com muitos fatores. Eu estou agora tentando a mesma abordagem para aprender francês, mas está sendo bem mais difícil, já que eu estou tentando aprender a escutar antes mesmo de ler =) Também é difícil aprender a beber chá sem açúcar; o seu sabor não é tão forte quanto o do café e a qualidade da água importa muito mais.

De qualquer modo, eu agora estou prestando atenção neste processo de aprendizagem entrelaçado com o meu dia a dia. É sempre bom ter coisas novas para aprender que nos tornem mais felizes e realizados.

Convite ao bandejão: o texto deste post suscitou um interessante debate, que o complementa com aspectos essenciais. Portanto, eu lhes convido a ler os comentários (lá vocês entenderão o "bandejão").

5 comentários:

  1. Otimo post Andre! Muitissimo interessante. Concordo plenamente em principio, mas discordo um pouco da analise dos fatos. O caso do cafe e do ingles sao sim coisas que aprendemos inconscientemente, mas eu acho que sao mecanismos completamente diferentes. No primeiro entra em campo seu sistema de recompensa, algo bem basico na nossa evolucao, que praticamente todos animais tem. No segundo, o buraco eh mais em cima, no nossos circuitos de linguagem, coisa que muitos animais tem, mas eh muito mais pronunciado nos humanos.
    Entao, cafe eh uma droga, algo que estimula seu sistema de recompensa. Tome com acucar, sal, limao, ou torrada de gilo, voce vai passar a associar o acompanhamento a cafeina e vai passar a gostar com o tempo. Existem milhoes de experimentos nessa linha.
    Ja a linguagem... Putz, poucas coisas sao tao priorizadas no nosso cerebro. Nao importa o ambiente em que estamos, estamos sempre tentando filtrar a voz humana e compreender a mensagem. Temos que fazer um esforco enorme para tentar nao prestar atencao quando alguem esta falando no celular do nosso lado. E cabeca chega a doer quando a gente ouve alguma coisa que por algum motivo eh dificil de entender, como um amigo numa danceteria ou uma lingua estrangeira. Tudo isso porque uma das principais funcoes do nosso cerebro eh compreender liguagem, nossa principal forma de comunicacao.
    Isso tudo so reafirma seu argumento. Devemos sim entender e usar todos esses mecanimos a nosso favor. Evolucao, raciocinio e aprendizagem sao coisas fascinantes e aparecem nas mais diversas situacoes.
    Abracao!
    PS: no caso do cha, eu nao acho que eh a quantidade de agua e sim a menor quantidade de cafeina, que na pratica nao estimularia seu organismo muito mais do que a glicose em si.

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  2. O ponto do Celso é válido. Mas ainda assim concordo com você André, pelo ponto do "aprendizado como adaptação". Acho que tudo o que tem relação com aprendizado, como tantas outras coisas, é bastante primitivo. Talvez por isso não pudemos entender direito até hoje.

    Estou tentando com o chá, mas está bem difícil. E Celso, talvez realmente seja a cafeína a culpada pela dificuldade, porque eu percebo que é ainda mais difícil deixar de colocar açúcar em chás de ervas que não tenham cafeína.

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  3. Celso, essa sua resposta agora me lembrou os memoráveis debates do bandejão! De fato, você tem razão que apesar de chamarmos tudo genericamente de cérebro são mecanismos completamente diferentes. Para um leitor menos avisado o artigo dá a impressão que eu coloquei tudo na mesma sacola. A ideia original era escrever um post curto, menos ambicioso, falando da experiência. Mas sabe como é, fui me animando e virou quase um teorema rsrsrsrsrs

    Neste sentido, como falou o Panaggio, a ideia seria apenas chamar a atenção para o aprendizado que acontece inconscientemente, mas que não prestamos atenção. Mas concordo que pela proporção e detalhamento que o artigo tomou eu precisaria pelo menos ter chamado a atenção deste processo. Celso, acho que o seu comentário complementa bem nesta direção e eu não poderia escrever melhor (até o Facebook gostou -- quando publiquei lá ele colocou o seu comentário ao invés do texto rsrsrsrsrs). Então vou colocar uma observação no post da importância de lerem este debate. Convite ao bandejão =)

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  4. Cara, este post renderia semanas de discussoes no bandejao. Eu estou lendo um livro de neurociencia que me chamou atencao para o quanto a linguagem eh fundamental em diversos processos no cerebro. Seja, por exemplo, quando identificamos objetos, ou quando fazemos contas matematicas, estamos sempre "falando" internamente os nomes das coisas. Gostaria de saber mais sobre as implicacoes educacionais desse tipo de coisa. E mais um monte: se a construcao e manipulacao de ferramentas foi tao importante na nossa evolucao, poderiamos usar isto tambem em educacao ou desenvolvimento de novas UI? Estou tambem lendo um livro sobre o impacto que o acesso (ou falta de) a espacos naturais tem sobre o desenvolvimento das criancas.. Que tambem gera diversas especulacoes sobre evolucao e aprendizagem. Cara, a gente devia organizar uma conferencia tipo TED, mas com todos os participantes munidos de suas bandejas. :)

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  5. Achei muito legal a proposta do Bandex Talks! Eu também acho muito interessante o papel da linguagem. Principalmente pela característica que você falou, é difícil de dissociá-la de outras operações de pensamento. O que poderia ser pensado como um mecanismo mediador de comunicação entre sujeitos acaba virando um mecanismo interno, que usamos para abstrair e mediar ideias. Eu estou lendo coisas relacionada a como abstraímos o mundo na forma de objetos. É muito interessante a ideia de que objetos e persistência são abstrações de um mundo em que nada é permanente, e como a psicologia analisa a sua formação no raciocínio humano.

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